Por André Pelliccione
Lançado no segundo semestre de 2009 pela Companhia Editora Nacional, a biografia do grande compositor Ataulfo Alves, de autoria do jornalista Sergio Cabral, é leitura obrigatória para quem deseja conhecer mais sobre a música popular brasileira e o samba, em particular. Acompanhada de fotos históricas da vida e da carreira do compositor — como as de seus encontros com os presidentes Getúlio Vargas, João Goulart e Juscelino Kubitschek, entre outras — a biografia escrita por ‘Serjão’ (como é conhecido Cabral no meio jornalístico) vai fundo na análise do samba e da obra de Ataulfo, que brindou a música brasileira com clássicos eternos como Amélia (parceria com Mário Lago); Sei que é Covardia; Atire a Primeira Pedra; Na Cadência do Samba; Pois é; e Oh seu Oscar, esta última com o também genial Wilson Batista. A parceria de Ataulfo Alves com Batista, aliás, é utilizada por Cabral para analisar os meandros e influências político-sociais sobre a produção dos compositores brasileiros, sobretudo durante o Estado-Novo de Vargas. Segundo Cabral, o samba Bonde São Januário (Ataulfo-Wilson Batista) teria sido produzido sob influência do então Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em consonância com a ideologia estadonovista de ‘revalorização da ética do trabalho’ no seio da classe operária. Diz a letra: ‘Quem trabalha é quem tem razão, eu digo e não tenho medo de errar, o bonde São Januário leva mais um operário, sou eu que vou trabalhar’, para em seguida concluir: ‘graças a Deus sou feliz, a boemia não dá camisa a ninguém, passe bem’. Bonde São Januário serviu, ainda segundo Serjão, como contraponto a composição anterior do próprio Batista, Lenço no Pescoço, na qual o maior adversário de Noel Rosa fazia aberta apologia da malandragem, em versos como: ‘meu chapéu do lado, tamanco arrastando, lenço no pescoço, navalha no bolso, eu passo gingando, provoco e desafio, eu tenho orgulho em ser tão vadio’, algo inaceitável pelos padrões do Estado corporativista.
Ao falar de Ataulfo, Cabral também conta parte da história do samba carioca, lembrando as inestimáveis contribuições de outros monstros sagrados do gênero, como João da Baiana, Noel Rosa e Ismael Silva, este último fundador, junto com Alcebíades Barcelos (o Bide) da primeira escola de samba da história, a Deixa Falar, atual Estácio de Sá. Além de grande compositor, Ataulfo foi, para a música, o que o craque Heleno de Freitas foi para o futebol: uma das mais elegantes e bem vestidas personalidades do mundo artístico brasileiro de sua época, apresentando-se sempre em ternos elegantes e bem cortados, a ponto de receber clamorosos elogios do exigente (e elitista) colunista social Ibrahim Sued.
Natural de Mirai, MG, Ataulfo Alves esteve, sobretudo, na vanguarda de sua geração, sendo um dos primeiros compositores de samba a se utilizar mais intensivamente de vozes femininas em suas gravações, como atestou o imenso sucesso de seu conjunto vocal ‘As Pastoras’. O compositor também contou, em diversas ocasiões, com o privilégio de ser acompanhado por nada menos que Jacob do Bandolin, cujos atributos musicais dispensam qualquer comentário adicional. Em 2009, completaram-se 40 anos da morte de Ataulfo, cujo desaparecimento deixou uma lacuna irreparável na música popular brasileira.
Sergio Cabral é um dos maiores conhecedores da música brasileira. O jornalista também é autor, entre outros, das biografias de Pixinguinha e Tom Jobim. Um de seus livros (História das Escolas de Samba) é hoje considerado um clássico do gênero no país.