Por André Pelliccione
Ao lado, a índia Pocahontas: amor não correspondido pelo capitão Smith simboliza apartação racial
Ilustração: do site wikipedia
No ano de 1607, chegava a Jamestown (Estados Unidos) o capitão inglês John Smith. Algum tempo após sua chegada, Smith foi capturado pelos índios. Quando a cabeça do capitão estava para ser esmagada, no entanto, a jovem índia Pocahontas (então com 12 anos) reivindicou a vida do prisioneiro para si. No futuro, Pocahontas tudo faria para agradar ao capitão Smith, chegando ao ponto de avisá-lo sobre possíveis ataques indígenas. Ao contrário do que se poderia esperar, porém, John Smith não se casou com a jovem Pocahontas, que em 1614 aceitou a fé cristã, passando a se chamar Rebeca. Posteriormente, a india casou-se com o plantador de tabaco John Rolfe. A vida de Pocahontas muito nos ensina sobre as diferenças fundamentais entre as formações sociais norte-americana e brasileira. Nos alerta, também, para as implicações dessas diferenças sobre a formação das identidades culturais em ambas as sociedades. O fato de Smith não ter se casado com Pocahontas é acontecimento carregado de simbolismo e expressa, na linha do tempo, o pressuposto básico do ‘multiculturalismo’ historicamente construído nos EUA: o de que cada ‘comunidade etnica’ deve viver separadamente, afirmando sua identidade apartada das demais. Sob tal prisma, negros, brancos e indígenas ‘nunca se misturam’, sendo a miscigenação encarada negativamente. Cena exemplar e paradigmática desta concepção é a que assistimos no filme ‘Mississipi Burning’ [Mississipi em Chamas], do cineasta Alan Parker, em que negros e brancos utilizam logradouros públicos (como banheiros e bebedouros) em separado, tipificando o racismo e a apartação vigentes no sul dos EUA. No Brasil, ao contrário, não foi esta a matriz cultural que se consolidou ou prevaleceu ao longo dos séculos de colonização, em que pesem as brutalidades cometidas pelo regime escravocrata contra negros e índios — estes últimos, exterminados física e culturalmente — e a mistificação encontrada em autores como Gilberto Freyre, com seu ‘familismo’ e o (já surrado) mito da ‘democracia racial’. Apesar das já aludidas mistificações, a obra máxima de Freyre [Casa Grande e Senzala] expressou, já em 1933, uma diferença fundamental em relação aos EUA, na medida em que abertamente foi a primeira a encarar a miscigenação como algo positivo e enriquecedor, tanto étnica quanto culturalmente. Matriz principal do pensamento racial na América do Norte e na Inglaterra — onde a Commonwealth britânica manteve e aprofundou a apartação social, sem nunca integrar jamaicanos ou quaisquer outros cidadãos das ex-colônias inglesas —, o multiculturalismo não apenas recusa a miscigenação, como afirma uma polarização étnico-cultural que, em vez de contribuir para integrar os diferentes grupos sociais, aprofunda a discriminação social e racial. Infelizmente, parcela expressiva dos movimentos negros brasileiros tem, acriticamente, importado e absorvido tais concepções, como se o Brasil não fosse, essencialmente, um país mestiço de negros com brancos, de brancos com índios, e destes com negros. Brasil dos cafuzos, mamelucos e mestiços de brancos com negros. Brasil caboclo. Negar o caráter mestiço de nossa sociedade é, portanto, o que há de mais reacionário, arcaico e retrógrado em termos de pensamento político-social.Por outro lado, admitir que somos uma nação mestiça não implica negar a existência do racismo na sociedade — onde lamentáveis exemplos de discriminação se sucedem dia-a-dia — e, muito menos, a violência que marcou o intercurso entre brancos, negros e índios, mancha indelével da colonização européia nos trópicos.Nenhuma mistificação ou propaganda será capaz de esconder que os povos negro e indígena (maioria da população) nunca foram efetivamente representados no Estado brasileiro, que, exatamente por isso, há que ser reorganizado a partir de um novo projeto de nação, como acertadamente quer o Movimento por Reparação.. Por mais que isso irrite parcela dos movimentos negros brasileiros, reconhecer a miscigenação como parte intrínseca de nossa identidade é o primeiro passo (não o único) a ser dado para acabar com a odiosa apartação social e racial no país. Outro importante avanço seria não mais internalizar o conceito de ‘raça’, invenção criada pelo racismo enquanto ideologia, e que tantos males causou à humanidade em diferentes períodos da história.