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06/05/2011 - Massacre de Carajás continua presente na memória de todos nós
Quinze anos depois, a maioria dos mutilados sequer recebeu suas indenizações. Massacre foi uma das maiores violências já cometidas contra os sem-terra.

 

 

Por Gilberto Alcântara da Cruz*

O descaso do Estado brasileiro em relação ao massacre de Eldorado dos Carajás já gerou contra o governo um processo, em 1998, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede nos Estados Unidos, feita pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL). "O governo brasileiro agiu de duas formas quando foi noticiado pela entidade internacional. Primeiro, culpou os próprios marchantes pelo ocorrido e, num segundo momento, por força da opinião pública, disse que já fazia coisas no assentamento, o que compensava o ocorrido", explica Viviam Holzhacker, advogada assistente da CEJIL, que acompanha o caso.

Por pressão internacional, a advogada afirma que o governo brasileiro aderiu a um processo, recentemente, de buscar acordo com os mutilados. "São feitas propostas de ambos os lados até chegar a um acordo. Estima-se que deve levar mais uns sete anos para ser resolvido o caso de todos", afirma Viviam Holzhacker.

Poucos mutilados receberam seus direitos de indenização e até hoje, 15 anos depois, muitos nem recebem a pensão mensal de R$ 346,00 (trezentos e quarenta e seis reais). "José, conhecido como Zé Lelé, hoje aos 32 anos de idade, foi um dos únicos a receber, em 2008, uma indenização de R$ 85 mil (oitenta e cinco mil reais), mais a pensão mensal no valor citado acima. Hoje vive do que seus irmãos plantam em seu lote, já que tem dificuldades para trabalhar em função das seqüelas do tiro na cabeça".

Um caso especial entre os mutilados chama a atenção: Mirson Pereira, um dos únicos que conseguiu uma cirurgia, no Hospital Regional de Marabá, para retirar uma bala alojada na perna esquerda. "Pensei que seria o fim das dores, mas quando voltei da sala de cirurgia o médico disse que havia errado e feito o corte na perna direita, disse que assim que eu me restabelecesse realizaria o procedimento na perna certa. Desisti, com medo, fugi do hospital". Mirson Pereira continua com a bala na perna e ainda aguarda sua indenização.

Na ausência de um tratamento médico adequado que cuide do corpo e da mente dos participantes da marcha, Índio, um dos mutilados, com duas balas alojadas na perna, desabafa: "Aconteceu o massacre em 1996. Mas ele terminou? Não! Pois esse grupo (do assentamento) ficou apenas porque o Estado não deu conta de matar no dia. Ficamos para contar a história, sofrer e ir morrendo aos poucos num massacre diário, que só terminará por completo com a nossa morte".

 Histórico da impunidade

 17 de abril de 1996, 155 homens da Polícia Militar do Estado do Pará matam 21 trabalhadores rurais, ferem dezenas de mulheres e crianças, comandados pelo Coronel Mário Colares Pantoja e o Major José Maria Pereira Oliveira, na PA-150.

Somente em 2002 o júri condena o Coronel Pantoja a 228 anos de prisão e o Major Oliveira a 154 anos por comandarem a chacina.

O governador que autorizou a ação da polícia, Almir Gabriel (PSDB), seu secretário de Segurança Pública, Paulo Sette Câmara, e o comandante –geral da PM não foram sequer indiciados.

Tanto o Coronel Pantoja quanto o Major Oliveira foram premiados, receberam o benefício de recorrer em liberdade. Em 2008, ambos tentam novo recurso, ao Supremo Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Federal, com único argumento de que teria havido nulidade do julgamento.

Em agosto de 2009, em decisão unânime, os ministros da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça rejeitaram o recurso apresentado pelos dois militares e a decisão manteve a condenação de ambos.

Abril de 2011, até o momento o Coronel Pantoja e o Major Oliveira foram apenas condenados, porém ainda permanecem impunes, "respondendo" em liberdade.

 Assentamento 17 de abril é considerado modelo

 O Assentamento 17 de abril completa 15 anos de existência, sendo uma das mais emblemáticas conquistas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Se a conquista da terra custou vidas e seqüelas graves, o modo como o assentamento desenvolveu-se virou modelo. Em um município dominado pelas grandes fazendas-empresa, caracterizadas pelo desmatamento em prol da agropecuária, o assentamento representa hoje um equilíbrio para o abastecimento de alimentação para a cidade.

Dados da prefeitura de Eldorado dos Carajás confirmam a importância do Assentamento 17 de abril para o abastecimento do mercado local. O frango, o milho e a mandioca são os produtos mais escoados para a cidade. A produção de leite também é expressiva, de 15 a 20 mil litros de leite são ordenhados por dia, o que representa a média da produção nacional. Além da apicultura, que manda mais de 200 litros de mel anualmente, há, também, um criadouro com 25 mil peixes.

 Diversidade orgânica

Para Altamiro Simplício da Silva, nas terras do assentamento tudo que se planta, se colhe. Em seus 25 hectares, planta milho, cupuaçu, jiló, berinjela, coco, repolho, abóbora, pimentão, mamão, cenoura, beterraba, arroz, alface e caju. Altamiro é o maior produtor de cacau da região. Em 2010, colheu 2,5 mil quilos da fruta.

Com uma renda mensal em torno de R$ 6 e R$ 7 mil, o agricultor afirma não utilizar nenhum fertilizante, herbicida ou veneno. "Eu mesmo faço tudo, com o esterco da galinha, de boi e com as folhas secas. Além da produção diversificada, que ajuda a proteger contra pragas, economizo dinheiro e não enveneno meus alimentos".

Hoje cerca das 700 famílias que vivem nos 37 mil hectares do assentamento têm seus ganhos de diferentes maneiras. Jeová Cavalcanti, o segundo cadastrado para conseguir um lote na então fazenda Macaxeira, por exemplo, vive da venda do leite para a cidade, porém toda a alimentação de sua família é retirada do lote, onde planta arroz, maracujá, milho, feijão, goiaba, manga, abacate e limão. "Dificilmente vou ao mercado na cidade comprar algo, pois daqui eu tiro tudo".

Criado no Assentamento 17 de abril, o agrônomo Raimundo Silva reconhece que, mesmo formado, não poderia discutir os rumos da produção agrônoma em uma fazenda "convencional". "Viveria escravo da macroeconomia, decidida pelos que dominam a produção e a terra". Uma das características do Assentamento é que as pessoas decidem o modo como querem viver e participam da vida política local.

Perspectiva para os Trabalhadores Rurais

O descaso dos governantes no trato com as famílias vitimadas pelo massacre de Eldorado dos Carajás é o retrato de mais de 400 anos de desmando dos latifundiários e mais recentemente do agronegócio em relação à agricultura familiar.

Nos últimos 16 anos (governos FHC e Lula), período em que as expectativas de mudança na política agrária se acentuou no meio dos trabalhadores rurais, o descaso novamente veio a tona. Os assentamentos, em sua grande maioria, foram promovidos semelhantes à antiga política de colonização do INCRA durante o período da ditadura militar (assentamentos em áreas inóspitas, sem mínimas condições de subsistência).

Especialmente nos últimos 8 anos, quando as expectativas eram mais alvissareiras, o resultado no que diz respeito a política de assentamentos foi aquém do apresentado no governo FHC. Dados do IBGE apontam que no governo Lula a concentração da propriedade da terra aumentou ainda mais.

O descaso no Estado do Pará, mesmo tendo o PT a frente da administração estadual, além do governo Lula, é tal que as estatísticas da Comissão Pastoral da Terra apontam o aumento da violência no campo (oficial promovida pela Polícia Militar e a dos grandes proprietários) neste período.

A prioridade de investimentos no agronegócio deixa claro que o governo não se preocupa com a transformação social no campo. No curto prazo parece ser um grande investimento, pois o comércio de commodities gera receita externa, porém quem mais lucra são as transnacionais. Geram pouquíssimos empregos, concentram ainda mais a renda e a propriedade da terra nas mãos de poucos.

O Brasil do neodesenvolvimentismo (como alguns denominam o governo Lula) voltou a ser uma economia agroexportadora e 69% de todas as exportações são commodities. Ou seja, matérias-primas agrícolas e minerais sem nenhum valor agregado. Neste processo produtivo, alguns poucos ganham muito, mas as empresas transnacionais ganham ainda mais, restando ao povo brasileiro o passivo ambiental e a injusta distribuição de renda.

Recente estudo publicado pela Secretaria de Saúde do Estado do Mato Grosso do Sul, considerado um paraíso para o agronegócio, em 10 municípios onde predomina o cultivo da soja, o índice de agrotóxico detectado no leite materno é alarmente. Significa dizer que a sanha por lucros cada vez maiores é tal que o fato de prejudicarem essa e futuras gerações é um fator de somenos importância.

Dados do Ministério da Agricultura apontam a existência de 3,8 milhões de famílias de pequenos proprietários de terra de até 10 hectares, que não tem sequer acesso ao PRONAF (Programa Nacional de Agricultura Familiar) ou a políticas públicas agrícolas, que constituem-se um exército de reserva esperando o êxodo rural, isto é, ir aventurar nos grandes centros e/ou a aposentadoria do Funrural. Agregam-se, a esses, 4 milhões de famílias de trabalhadores rurais sem-terra, posseiros, assalariados rurais, público potencialmente beneficiário da democratização da propriedade da terra.

A questão da reforma agrária hoje, para além de assegurar uma produção agrícola salutar, voltada para o abastecimento do mercado interno, distribui renda de forma efetiva, assegura um processo de fixação de famílias no meio rural e contribui efetivamente para a redução da violência nos grandes centros urbanos.

* Gilberto Alcântara da Cruz é diretor do Sintcon-RJ



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