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11/01/2012 - Barbas de molho com a estratégia econômica da China
Com um pragmatismo secularmente desenvolvido, a China combinou o Estado hiper-controlador com a economia de mercado. Casou com os EUA e criou um G-2.

 

Por Carlos Lessa*                            

Sou de uma geração treinada em ler nas entrelinhas. Vivi as longas décadas de regimes ditatoriais latino-americanos e aprendi a pesquisar as intenções nos discursos oficiais. O Dr. Ulysses Guimarães me ensinou que se deve prestar atenção aos silêncios nos discursos.  Percebo uma crescente preocupação da presidente Dilma com a China e suas pretensões geopolíticas e geoeconômicas. Na reunião do G-20, a presidente declarou sua preocupação com a ausência de compras chinesas de produtos industriais brasileiros (leia-se, nas entrelinhas, que o Brasil é exportador de alimentos e matérias-primas sem processamento: soja em grão, minério de ferro bruto, couro de vaca sem curtição etc.).               Em passado relativamente recente, exportamos geradores para a grande usina do Rio Amarelo; agora, estamos importando geradores da China. Vendemos aviões da Embraer. Ingenuamente, aceitamos instalar uma filial da Embraer na China; os chineses clonaram a fábrica e, hoje, competem com o avião brasileiro no mercado mundial. Esta semana, a presidente declarou sua preocupação com a tendência chinesa à aquisição de grandes glebas agrícolas no Brasil. A percepção presidencial não resolve o problema das relações Brasil-China, porém já é meio caminho andado que o poder executivo nacional tenha aquelas dimensões presentes.             

O enigma chinês é fácil decifrar. O Brasil teve um crescimento econômico,  de 1930 a 1980, de 7% ao ano. Depois dessas décadas, mergulhamos na mediocridade e patinamos com uma taxa média ridícula de 2,5% ao ano. A China, nas últimas décadas, vem crescendo anualmente a taxas entre 9% e 10%. Entretanto, está em situação potencialmente pior que o Brasil. Hoje, mais de 80% da população brasileira está em áreas urbanas e 50% em metropolitanas e nem chegamos aos 200 milhões de habitantes. A China tem uma população de 1,34 bilhão de habitantes, sendo que menos de 50% estão na área urbana. Como a renda média do chinês rural é um terço da do chinês urbano, é inexorável uma transferência equivalente a duas vezes a população brasileira para as cidades chinesas, nos próximos 20 anos. É fácil entender o sonho de urbanização do chinês rural. Na realidade, a periferia urbana das cidades chinesas já está se transformando em imensas “favelas”.              

Sabemos que o Brasil tem uma péssima distribuição de renda e riqueza. Houve uma melhoria da participação dos salários na renda nacional, que evoluiu, desde 2000, de 34% para 39%. A elevação do poder de compra dos salários foi importante, entretanto o leque salarial se tornou mais desigual e houve pouca geração de empregos de boa qualidade. O salário médio brasileiro é muito baixo, entretanto é, por mês, igual ao limite de pobreza chinês ao ano (cerca de € 150), isto é, o brasileiro pobre ganha 12 vezes mais que o chinês pobre. Nosso governo fala de uma “nova classe média” e esconde que o lucro real dos grandes bancos brasileiros cresceu 11% por ano no período FHC e 14% durante os dois mandatos do presidente Lula. Equanto os colossais bancos chineses têm uma rentabilidade patrimonial inferior a 10%, os bancos brasileiros chegam a 20%.              

É impensável o futuro demográfico chinês. No passado, cada família só podia ter um filho; agora, essa regra está sendo relaxada. A urbanização e a industrialização chinesas já comprometeram o lençol freático da China do Norte. Com restrições de água, e necessitando transferí-la cada vez mais para a sede da indústria e população urbana, a China não produzirá alimentos suficientes. Se o consumo interno da China crescer cada vez mais, haverá falta não só de água, mas também de energia fóssil e hidráulica, além de, obviamente, todo um elenco de matérias primas.              

O planejamento estratégico de longo prazo da China é para valer. O projeto geopolítico e o geoeconômico chinês está transformando a África e parte da Ásia do sudeste em fronteira fornecedora de alimentos e matérias primas. Em busca da auto-suficiência de minério de ferro, a China já está desenvolvendo as enormes reservas do Gabão. A petroleira chinesa já está nas reservas de petróleo de gás do coração da África e a ocupação econômica de Angola é prioridade diplomática e financeira da China. O extremo sul da América Latina é objeto de desejo expansionista chinês, que se propôs a fazer e operar uma nova ferrovia ligando Buenos Aires a Valparaíso, perfurando um túnel mais baixo na Cordilheira dos Andes. O Chile – com pretensão de se converter na “Singapura” do Pacífico Sul – e os interesses agro-exportadores argentinos adoram a idéia. Carne, soja, trigo, madeira, pescado e cobre estarão na periferia da China do futuro. A presidente da Argentina é relutante em relação a esse projeto, porém o Mercosul está sob o risco de se converter, dinamicamente, em pura retórica.              

O ‘Império do Meio’, unificado pela dinastia Han (ainda antes de Cristo), atravessou séculos com Estado centralizado e burocracia profissional estruturada. No século XIX, a China balançou pela penetração da Inglaterra vitoriana; enfrentou a perfídia mercantil do ópio controlado pela Índia britânica. Sua república, no século XX, foi ameaçada pela expansão japonesa, e somente após a Segunda Guerra Mundial conseguiu, com o Partido Comunista Chinês (PCC), restaurar a centralidade.              

Com um pragmatismo secularmente desenvolvido, a China combinou o Estado hiper-controlador com a “economia de mercado”. “Casou” com os EUA e criou um G-2, onde mais de três mil filiais americanas produzem na China e exportam para o mundo (70% das exportações de produtos industriais são de filiais americanas).              

O superávit comercial chinês é predominantemente aplicado em títulos do Tesouro. Esse é um sólido matrimônio, em que os cônjuges podem até brigar, mas não renegam a aliança mutuamente conveniente. Enquanto isso, a China repete a proposta da Inglaterra vitoriana para a periferia mundial: fonte de matérias-primas e alimentos, a periferia mundial é progressivamente endividada com os bancos chineses e seu espaço econômico é ocupado por filiais da China. A Revolução Meiji, que modernizou e industrializou o Japão, está em plena marcha na China, que procura ser a campeã mundial em ciência e tecnologia. A estratégia da China combina as chaves do sucesso da Inglaterra vitoriana com a prioridade científico-tecnológica japonesa.              

Que a China faça o que quiser, porém o Brasil não deve se converter na “bola da vez” da periferia chinesa. País tropical, com enormes reservas de terra agricultável, água e fontes de energia fóssil e hidrelétrica, imagine-se a prioridade estratégica para o planejamento chinês em sua marcha pela periferia.              

O discurso da globalização, a fantasia da “integração competitiva”, a ilusão de ser “celeiro do mundo” com brasileiros ainda famintos e a atrofia da soberania nacional podem vir a ser um discurso de absorção da proposta neo-colonizadora da China.                  

Leio, nas palavras da presidente Dilma, uma percepção do risco do “conto do vigário” chinês. Temo os vendilhões da pátria, entregando energia e alimentos para o neo-sonho imperial.

*Carlos Lessa é economista e Professor Emérito de Economia Brasileira. Ex- Reitor da UFRJ e Ex- Presidente do BNDES                                                                 



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