Por André Pelliccione*
Escrito em 1847 e publicado no ano seguinte como o ‘programa’ da Liga dos Comunistas Alemães, o Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels, é com certeza o texto marxista mais conhecido, lido e divulgado em todo o mundo.
No Manifesto, Marx e Engels afirmaram o princípio, basilar no materialismo, de que ‘a história da humanidade é a história das lutas de classes’. Com isto, superavam a concepção de história vigente até então, que abordava as transformações sociais e políticas apenas pela sua exterioridade e aparência, sem jamais ir ao âmago das determinações mais profundas para o desenrolar dos acontecimentos, começando pelas de ordem econômica, centradas na contradição entre capital e trabalho.
Foi também no Manifesto que os autores buscaram desvendar o real caráter de classe do Estado burguês, apresentado como um ‘comitê gestor de negócios da burguesia’. Até então, e como efeito da predominância da filosofia idealista hegeliana no pensamento europeu e, em particular, no alemão, o Estado era concebido como o resultado de um movimento especulativo do espírito (ideia), uma abstração universalizante com capacidade de englobar a família e a sociedade civil. Já em 1844, em sua ‘Crítica à Filosofia do Direito em Hegel’, Marx havia demonstrado que, ao contrário, o Estado era o produto objetivo da sociedade civil, e não uma ‘potência’ autônoma ou desvinculada dessa mesma realidade. É essa nova concepção que, no Manifesto, estrutura a afirmação de que ‘o Estado é um comitê gestor da burguesia (classe dominante), estando a serviço desta classe’, fato que, nos dias atuais, serve para refutação de teses reformistas e mistificadoras que não se cansam de pregar a ilusória possibilidade de ‘democratização’ do Estado burguês, o que é extremamente danoso ao avanço da consciência crítica dos trabalhadores. Papel ‘revolucionário’ do capitalismo
Talvez um dos aspectos mais importantes do Manifesto, contudo, seja a identificação, por Marx e Engels, do papel revolucionário exercido pela burguesia e o modo de produção capitalista, no sentido de transformar as relações de produção em um nível até então sem precedentes. A certa altura do texto, dizem os autores: “onde conquistou o poder, a burguesia destruiu as relações e instituições feudais e patriarcais, não deixando subsistir entre os homens nenhum outro vínculo que o interesse nu e cru, baseado no cálculo frio e racional. A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção e, por conseguinte, as relações de produção”. Tal constatação é a que, no pensamento marxista, fundamenta a tese de que ‘a um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas correspondem determinadas relações de produção’, e que, ‘em determinado momento da história, essas mesmas relações de produção entram em contradição com o desenvolvimento das forças produtivas’.
O potencial do capitalismo de revolucionar o mundo da produção real (infraestrutura), bem como as instituições políticas, sociais e jurídicas que lhe correspondem (superestrutura), é o que, no Manifesto, leva Marx e Engels a classificarem de ‘reacionárias’ todas e quaisquer proposições que, direta ou indiretamente, tentem ‘girar a roda da história em sentido contrário’. É essa concepção que estrutura a crítica aos socialismos feudal, pequeno-burguês, burguês, alemão e utópico, corretamente caracterizados como reações do ‘Ancién Regime’ (antigo regime), da pequena-burguesia em vias de proletarização, do reformismo burguês-conservador e do idealismo. Com relação a este último, a crítica, embora reconheça que socialistas como Saint-Simon, Fourrier e Robert Owen tenham percebido a contradição entre as classes na sociedade capitalista, conceberam projetos utópico-idealistas nos quais o proletariado não era, em momento algum, sujeito de sua própria libertação. No entanto, ainda que o proletariado, no socialismo utópico, tivesse sido concebido como ‘sujeito político’ de sua própria libertação, tratava-se de um momento histórico (primeira metade do séc. XIX) em que essa classe ainda não havia atingido o desenvolvimento necessário a tal empreitada, condição que é o produto necessário da época burguesa e do desenvolvimento das forças produtivas.
Globalização e capitalismo
Outra das facetas do Manifesto Comunista que chama a atenção a uma leitura cuidadosa é o fato de, em sua análise do capitalismo, Marx e Engels anteciparem muitas das tendências globalizantes desse modo de produção, que, do imperialismo do início do séc. XX aos dias atuais, dominou mercados e transformou profundamente as relações econômicas, sociais, políticas e jurídicas, marcando sua presença no mundo inteiro, nos cinco continentes, como forma hegemônica de produção e organização social. “A necessidade de mercados crescentes para seus produtos — dizem Marx e Engels, no Manifesto — impele a burguesia para todo o globo terrestre. Através da exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países”. Uma das profundas transformações engendradas pelo capitalismo foi a centralização política, materializada na formação e constituição de Estados nacionais com uma superestrutura ‘racionalizada’ (no sentido ‘weberiano’ do termo), resultado de um processo mais amplo de concentração de capitais e meios de produção em escala sem precedentes, o que, por sua vez, possibilitou a concentração de grandes massas proletárias e o consequente desenvolvimento de sua ‘consciência de classe’.
Resultante do caráter global do modo de produção capitalista se infere, portanto, e com base no exposto, o caráter internacional da luta do proletariado contra a exploração, conforme a máxima de que ‘o proletariado não tem pátria’, embora, num primeiro momento, sua luta imediata seja contra as respectivas burguesias nacionais, no interior de cada país.
Caráter revolucionário do proletariado
O Manifesto Comunista também afirmou uma das mais importantes teses do marxismo e do socialismo científico, que é a do ‘caráter revolucionário do proletariado’, apresentado como aquela classe que, libertando-se da opressão do capital, libertará o conjunto da sociedade da opressão e exploração. “De todas as classes que se opõem à burguesia, apenas o proletariado é verdadeiramente revolucionário”, afirmam os autores do Manifesto, explicando em seguida que, com o progresso da indústria, as condições de vida do proletariado ‘descem cada vez mais’. É a tese da ‘pauperização’ e ‘dependência’ crescentes dos trabalhadores assalariados em relação ao capital, que posteriormente seria desenvolvida por Marx em duas obras seminais: ‘Trabalho Assalariado e Capital (1849)’ e ‘Salário, Preço e Lucro (1865)’.
Embora no plano genérico, o Manifesto oferece ainda alguns elementos de reflexão sobre o caráter e o modus operandi da ideologia enquanto ‘falsa (ou incompleta) representação da realidade’, baseada numa racionalização que opera sobre o nível fenomênico, ou aparente, do mundo real e das coisas. No caso, a ideologia burguesa dominante na sociedade capitalista, que apresenta ‘o interesse de classe da burguesia travestido de interesse geral’ da sociedade, transformando em leis eternas da natureza e da razão as relações burguesas de produção e propriedade’, de que são exemplos, nos dias atuais, as tentativas de ‘naturalizar’ o modo de produção capitalista, apresentado como o ‘fim da história’ ou a ‘perfeição das instituições sociais e econômicas’.
Relação entre infra e superestrutura
As ideias, o imaginário e a ideologia relacionados a um período histórico da sociedade são, para o marxismo, determinados em última instância pela base econômica da sociedade, sua produção material, suas relações reais. Em suma, por suas relações de produção. Como exemplo, Marx e Engels citam que, com o desenvolvimento da produção capitalista e a consequente ascensão político-econômica da burguesia, assistiu-se gradativamente a uma profunda transformação nas superestruturas do antigo regime, desmoronando-se toda uma visão de mundo que já não correspondia às necessidades de expressão da nova classe dominante.
Na produção literária, uma das manifestações desse ‘espírito burguês’, que substituiu o mundo das superstições e o ideário do ancien regime, está na obra ‘Cândido ou O Otimismo (1756)’, do filósofo iluminista francês François Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire, na qual o personagem Cândido vive, em toda a sátira, a tensão dialética entre o otimismo irrefletido de Pangloss e o pessimismo amargurado de Martinho. O final da história, e da contradição, se resolve quando, sem ceder a qualquer dos extremos, Cândido assume enfim uma postura ‘racional’ ante a natureza e suas dificuldades. É a emergência do novo ideário burguês, por meio do qual foram descortinados os mistérios que envolviam a relação do medievo com o mundo real, medievo que só seria 'libertado' por meio da ‘razão’ (iluminismo). Somente quando devidamente instrumentalizado pelo marxismo (ciência da história) — entendido aí como corpo teórico e ferramenta de análise da realidade concreta — é que se pode, efetivamente, compreender as relações entre infra e superestrutura expostas acima e o próprio movimento da história. Compreender para, concretamente, intervir na luta de classes a serviço do proletariado e da revolução proletária. Eis o legado do Manifesto.
*o autor é mestre em Ciência Política pelo IFCS-UFRJ, bacharel em comunicação social pela PUC-RJ e jornalista