Pesquisa:
NOTÍCIAS
17/09/2020 - A nova enganação
Chegou o tempo do autoritarismo líquido.

Capaz de misturar momentos de exceção debaixo de uma aparência democrática, chegou o tempo do autoritarismo líquido, ensina Pedro Serrano  

Pedro Serrano tem o poder de pôr ordem nas minhas ideias. Trata-se de um verdadeiro professor, mais do que isso, de um pensador do Direito e todas as suas implicações, a começar pela política. Tenho um claro entendimento desta situação desde o tempo, não muito longínquo, de um debate que se deu já depois do golpe contra o governo petista em Salvador da Bahia, do qual ambos participávamos. E foi então que Serrano abriu minha cabeça para me levar a entender o que de fato estava acontecendo. Vivíamos um regime de exceção e ele teve a generosidade de explicar como e por quê. Era o tempo que se seguiu ao impeachment de Dilma Rousseff, no início de um processo que a rigor começa com o nascimento de um trágico enredo chamado Lava Jato.

Desde então, cultivo uma grande admiração por Pedro Serrano, felizmente disposto a ministrar suas aulas na coluna de Carta Capital. Se não me engano, naquele dia havia uma plateia numerosa diante de nós, e na primeira fileira sentava-se Jaques Wagner, que ocupara a chefia da Casa Civil da presidenta impedida. Desta vez, o professor expande a sua aula: a conjuntura ganhou uma dimensão maior e mais complexa do que a apresentada há alguns anos. Algo, de todo modo, surge com nitidez, e entre outras coisas o fato de que meu pai também ficaria enlevado com a fala esclarecedora de Pedro Serrano.

Meu pai era um liberal da velha-guarda, a seu modo filho da Revolução Francesa, quando esta tendência ideológica representava uma desassombrada resistência ao fascismo. Ele acabou preso pela intervenção de meia dúzia de esbirros armados até os dentes. Nem por isso deixou de se entregar depois de borrifar sobre o rosto de barba bem escanhoada um perfume à base de citronela. Pois hoje o professor Serrano enxerga uma única, insubstituível saída do trágico momento em que precipitamos. Uma união em torno dos ideais da igualdade, da liberdade dos valores humanistas que ainda são cultivados, aqui e acolá, em lugares por isso privilegiados.

Há um momento da fala do meu amigo que, confesso, me empolga: refere-se ele a Hannah Arendt, segundo quem o direito fundamental do ser humano é o direito a ter direitos. “Direito não é tinta no papel da Constituição, direito é o sangue na calçada, sangue daqueles que morreram exatamente na conquista dos seus direitos” afirma Serrano. A referência ao sangue na calçada traz à tona as minhas crenças sobre a impossibilidade de qualquer gênero de conciliação com a Casa-Grande, a chamada conciliação das elites, porque é entre elas que se dá. Para a Casa-Grande é inconcebível qualquer entendimento com a senzala.

“A relação autoritária se restabelece mais inteligente e eficaz do que nas ditaduras do século XX, mas não menos deletéria”.

Mas o que são os direitos? Um pacto intergeracional entre os que já morreu, quem está vivo e quem vai nascer. “Eu tenho o dever de entregar o direito conquistado à próxima geração” acrescenta Serrano. Os últimos lances políticos de Bolsonaro mostram a preocupação dele em relação às eleições de 2022, ou seja, o propósito da reeleição. Para tanto o cambiante ex-capitão revisita à sua maneira medidas tomadas pelos governos petistas, no quadro de uma política assistencialista que tem evidentemente resultados positivos em um país entregue à pobreza da maioria. Assim como eu, e como tantos outros observadores da situação, enxerga com espanto a possibilidade da permanência no poder desse monumental fanático do apocalipse e do seu bolsonarismo.

“Se conceder direitos humanos, sociais, numa cultura como a nossa, que não valoriza a liberdade, corremos o risco de um longo período de um tempo ruim pela frente” é o pensamento de mestre Serrano, que eu recebo enquanto o pássaro do desespero bate asas no meu peito. E deixo o campo livre aos pensamentos do amigo professor.

Mino Carta – Revista Carta Capital – 9/9/2020  



Voltar