Sintcon/RJ – a atual crise tem sido apresentada como ‘crise de hipotecas’, ou como uma crise apenas ‘norte-americana’. O que existe de verdade (e inverdade) nestas versões?
Jacques D’Ornellas – os monopólios precisam dissimular o verdadeiro caráter da crise, que é crise do sistema capitalista. No caso das hipotecas, o que houve foi que forçaram a barra para os mutuários se endividarem. O que se omite, nesses casos, é que a crise não aconteceu por causa das hipotecas subprime, mas porque tinham que superar uma crise de sobreprodução do capital na virada do milênio. Uma crise estrutural porque a produção supera em muito a capacidade de consumo da sociedade. Induziram os mutuários a se endividarem porque a economia dos EUA estava parada. E para movimentá-la tinha dois caminhos: o estímulo à máquina de guerra, que já estava sendo feito. E a dinamização da economia via indústria imobiliária.
S – E o que fizeram?
D’Ornellas – financiaram imóveis novos e refinanciaram as hipotecas antigas, numa época (início da década) em que os juros estavam a 1%. Então, depois houve a retomada do crescimento da economia e, com ela, um aumento dos juros, que foi acompanhado também pelo aumento no preço dos combustíveis. Isto com o tempo impossibilitou o pagamento dessas hipotecas. Mas o fato é que a economia cresceu a partir do gasto, estourando orçamentos e aumentando o endividamento, inclusive do governo.
S – Mas por que então a crise é estrutural?
D’Ornellas – porque essa crise revela a contradição fundamental da estrutura capitalista de produção – a contradição entre o trabalho (social) e o capital (em propriedade privada), entre o caráter social da produção e a propriedade capitalista privada dos meios de produção. Ela não é uma crise só dos EUA. É global também. O primeiro aspecto é que hoje, em todo o mundo, existe uma grande quantidade de meios de pagamento e títulos, em dólar, sem lastro. Ou seja, sem base material para sustentá-la. É uma quantidade de dólares que, se fosse aplicada ao mesmo tempo na economia real, explodiria essa economia real, dada a impossibilidade desta de ‘realizar materialmente’ tamanha circulação monetária. Outro aspecto, por sinal contraditório, é que a crise é estrutural porque o capitalismo tende, cada vez mais, a desenvolver e aperfeiçoar as forças produtivas, buscando produzir sempre mais com um custo menor. Isto significa que, com um mercado já saturado, a crise foi se aprofundando ao longo dos anos e muitas corporações norte-americanas se globalizaram, migrando para outros países, como, por exemplo, a China. Nos EUA, no entanto, elas foram (e continuam) sendo obrigadas a competir com mercadorias produzidas fora dos Estados Unidos a um custo bem menor. É por isso que, com o agravamento da crise, essas empresas recorreram ao governo norte-americano, pedindo bilhões de dólares em socorro financeiro.
S – E as consequências?
D’Ornellas – criou-se um pânico, aumentado com a crise de crédito. Mas se o governo dos EUA atender a todas as empresas e bancos que lhe pedem socorro, o déficit fiscal aumentará de forma absurda, e não haverá condição de sustentar esse déficit indefinidamente. Por isso é que o governo norte-americano vende títulos do Tesouro dos EUA para ‘rolar’ essas dívidas. É por isso também que a atual crise é uma espécie de ‘saco sem fundo’, pois não adianta ficar injetando bilhões de dólares na economia, uma vez que isto não resolverá o problema estrutural da economia capitalista. Estamos, na verdade, diante de uma crise de ‘novo tipo’ – um tipo terminal, para a qual não adianta aplicar os tradicionais instrumentos de política econômica, como, por exemplo, o aumento artificial de liquidez.
S – Qual o ponto de referência histórico para a atual crise?
D’Ornellas – na verdade, foi a guerra do Vietnam, que consumiu muitos recursos do Tesouro norte-americano, que teve de arcar com coisas que não podia. Para custear aquela guerra, trocaram o estoque de ouro por títulos. Mas as pessoas, em vez de ficarem com os títulos, preferiam ficar com o ouro, cujos estoques foram baixando por essa razão. Aí foi que o governo norte-americano, em 1971, abandonou o padrão-ouro. Em outras palavras, o dólar passou a não ser mais lastreado em ouro. Ficou uma moeda solta, sem controle. A partir daquela época foi que as emissões de dólar aumentaram exponencialmente. Enquanto que, entre os anos de 1945 e 1965, as emissões de dólares foram de 55%, entre 1970 e 2001 essas emissões foram de 2000%. Um absurdo. Calcula-se que, atualmente, haja dólares numa proporção quase vinte vezes superior ao PIB mundial, que é de US$ 60 trilhões.
S – Podemos afirmar que é uma crise de liquidez?
D’Ornellas – Não. Na verdade, a crise não aconteceu e não acontece por falta de moeda, mas, ao contrário, ela ocorre também pela grande quantidade de moeda falsa, quer dizer, sem lastro. Cumpre ressaltar que, em conseqüência da emissão de dólares (e títulos em dólares) sem lastro, o endividamento dos EUA cresceu ainda mais, pois o país tinha que fazer frente a suas despesas correntes e às despesas bélicas. O maior déficit dos EUA é do Pentágono. A economia dos EUA, como já disse, foi aquecida nos últimos anos através do aumento desses gastos em dólares sem lastro. Ao mesmo tempo, as dívidas [públicas e privadas] foram renegociadas indefinidamente. Mas isto não resolveu o problema. Apenas adiou o momento em que teriam (e terão) de ser honradas e resgatadas, como aconteceu com as hipotecas e subprimes.
S – Como fica a situação de países, como China e tigres asiáticos, que possuem grandes quantidades de reservas e títulos em dólar?
D’Ornellas – no governo Bush, os EUA tentaram transferir o ônus de sua crise a esses países. A China, porém, não aceitou, dizendo: ‘ou vocês [EUA] validam os títulos que possuo ou então venderei os títulos restantes’. Essa foi a razão que levou o governo dos EUA e o Congresso Norte-Americano a rapidamente liberarem a ajuda ao sistema financeiro e corporações. O governo dos EUA teria que honrar os títulos em dólar e outros compromissos. Mas isto também não soluciona a crise. A China sabe que possui ‘créditos pôdres’ em dólar, e por isso procura aplicar e ‘se desfazer’ desses ativos através de investimentos em sua economia e em várias outras partes do mundo, como África, América do Sul e etc.
S – O dólar, como moeda falsa (sem lastro) destrói moedas com lastro real?
D’Ornellas – sim. Os países que possuem títulos em dólar sabem muito bem que a moeda norte-americana não possui mais lastro, e que tende a desvalorizar cada vez mais. Então os governos tentam se desfazer, como frisei. O Brasil, em comparação com outros países, não possui grandes reservas em dólar e, para rolar sua dívida, necessita de novos aportes, mas em dólar. Com o agravamento da atual crise, houve uma fuga de dólares de praças financeiras como o Brasil. Dólares que fluíram aos mercados financeiros dos países ricos, sobretudo os EUA, para cobrir ‘rombos’ e ‘déficits’. Aqui, isto causou uma repentina valorização do dólar e consequente desvalorização do Real. É a moeda falsa [dólar] causando a erosão de uma moeda com lastro [Real], comprometendo [para baixo] as reservas do Brasil em dólar.
S – O dólar tende a ser substituído como padrão monetário mundial?
D’Ornellas – Acredito que sim, talvez por uma ‘cesta de moedas’ ou coisa parecida. O tema é complexo porque envolverá todo um reordenamento geopolítico, com uma nova divisão de áreas de influência nos âmbitos global e regional. É uma discussão que envolve também o necessário debate sobre a hegemonia dos EUA no sistema de poder e relações internacionais. O fato é que, a cada dia, a crise nos apresenta uma nova faceta e, como é de novo tipo, essas facetas são sempre surpreendentes. A economia mundial está sendo governada pela crise, e os comentaristas especializados deveriam ter a coragem de dizer isto abertamente às pessoas.
S – Como você está vendo a atuação do governo brasileiro, que defendeu a ajuda aos banqueiros e montadoras?
D’Ornellas – O governo está num impasse. Muitos países, como a China, forçarão investimentos em dólares para mercados como o do Brasil. Ao mesmo tempo, o governo Lula terá que atender às demandas sociais agravadas pela atual crise. Os trabalhadores, de sua parte, terão que se impor através de uma grande pressão de massa para que sejam garantidos os direitos à vida, ao emprego, ao salário e à renda. Até o momento, contudo, acho que o governo Lula está seguindo uma política tradicional.